À mesa com prazer
Por Christina Ferraz Musse
Nestes dias de outono, ainda não muito frios, mas já bastante convidativos para vivências mais íntimas, pode haver algo melhor do que degustar, saborear, comer? O cheiro dos alimentos parece ficar mais presente, mais sensível ao olfato. O prazer antecipado do que poderá ser uma gloriosa refeição atiça todos os outros sentidos. E esta época do ano parece perfeita para refeições pantagruélicas: rabadas, mocotós, cozidos, feijoadas, tutus, leitões à pururuca, tripadas ( como eles chamam, lá em Portugal, a nossa popular buchada ), canjiquinha com costela... Tudo regado a um tinto encorpado, um vinho de boa cepa, um belo cabernet sauvignon. Ou uma pinga, que temos muitas e da melhor qualidade! Ou ainda a infalível fórmula, que guarda a alquimia dos deuses: a sagrada caipirinha ( com cachaça! ), que pode ser de lima, limão, maracujá, qualquer fruta que deixe um pouquinho de amargo no paladar...
Aprendi a venerar o ritual da mesa com meu pai. Para ele, sentar-se à mesa tinha um significado maior do que simplesmente comer ( o que já é ótimo, diga-se de passagem! ). Desde pequenos, ele nos levava, eu e meus irmãos, para comprar guloseimas na tradicional Caso Lidador, no centro do Rio de Janeiro. Um verdadeiro banquete para os sentidos: especiarias, embutidos, queijos. Cedo, aprendi a apreciar um Camembert, um Roquefort, um pâté de foi gras, azeitonas gregas, azeite português, caviar ( que achávamos muito esquisito ), alcachofras... Antes do almoço, ficávamos reunidos na mesa da cozinha. Papai nos permitia pequenas "bicadas", como ele dizia, no seu vinho do Porto, ou no gim tônica, ou até num bom e velho whisky. A reunião aguçava os sentidos, antecipava os prazeres da mesa propriamente ditos e nos fazia exercitar a magia do diálogo, da conversa, da troca de idéias.
Mais tarde, na grande mesa de refeições da Fazenda da Floresta, em Juiz de Fora, passei a fazer de cada refeição uma comunhão: de prazeres, de amores, de afetos. Vovô ficava na cabeceira. Em volta dele, seguindo uma hierarquia imutável, vinham os filhos, genros e noras, e nós, os netos, sempre famintos, à espera dos suculentos bifes preparados pela dona Lígia, na chapa quente do fogão à lenha. E a batata frita? Tão fininha, que mais se parecia com cabelinhos de anjos. Os pratos eram colocados à mesa e esperávamos, não muito pacientes, que chegasse a nossa vez. Naquela época, os adultos sempre ganhavam a melhor parte e eram sempre servidos primeiro. Comida correta, simples, universal, mas única, na forma de ser preparada e saboreada. A sobremesa geralmente nos reservava as delícias, que hoje reconheço, de uma boa goiabada cascão com queijo minas fresquinho. Mas a garotada, todos aqueles netos empoleirados na mesa, aguardava mesmo era por uma ocasião especial, quando a refeição era finalizada por uma estupenda mousse de chocolate, feito com barras da Bhering, manteiga de primeira, e jamais misturada no que seria o sortilégio de uma batedeira: tinha que ser dado o ponto da mousse na mão! (A mousse de chocolate já nos inspirava, nas viagens do Rio para Juiz de Fora, quando vínhamos, eu e meus irmãos, cantando o refrão: "Ah, se mousse fosse feijão!" ).
Mas o melhor dessa época era mesmo a hora do café. O café era o pretexto para o vovô encher o cachimbo de um fumo extremamente cheiroso, acendê-lo e soltar aquelas longas e inesquecíveis baforadas no ar. Vovô se tornava então um personagem: conseguíamos imaginá-lo na Europa; quando jovem, foi estudar na Inglaterra, para, depois, tocar a fábrica de tecidos da família, em Juiz de Fora. Vovô era para nós realmente inglês: fleumático, nunca perdia a calma, gostava de cachorros, e de um Bloody Mary, de torradas com ovos e bacon ( aos sábados ) e de uma maravilhosa geléia de laranja! Só tomava água mineral com gás e desafiava nossa curiosidade mantendo suas preciosas iguarias guardadas numa pequena geladeira, que os netos gostavam de assaltar à noite, e que acabou por ganhar um cadeado.
No final das refeições, quando vovô acendia o cachimbo, os tios sacavam do bolso das blusas poderosos charutos, que eles cheiravam antes de acender. As mulheres que fumavam, ainda uma minoria, acendiam um Minister ou o forte Continental. E ficávamos ali, nós, crianças, sentindo-nos envolvidos pela fumaça, um verdadeiro fog londrino, e pelas palavras: as histórias picantes, que mal entendíamos, os casos de família, os assuntos mais sérios, que meu pai sempre levava à mesa, porque não gostava de perder tempo com bobagens. Depois de muito conversa, partíamos para a varanda, e continuávamos a conversar pela tarde adentro. Mais um café, um outro cigarro, e o prazer de ver o tempo se esvair sem pressa, lentamente, como devem ser sorvidos todos os prazeres. Sinto saudades. O prazer da mesa, o prazer da conversa. Faço minhas as palavras de Mário Quintana, que, num texto do livro "A vaca e o hipogrifo", fala do tempo em que havia restaurantes "e não esses balcões de hoje em que o freguês massificado e apressado, ao servir-se de um frango, parece que o está devorando no próprio poleiro". A arte da comida é, de certa forma, a arte do convívio e, certamente, a da poesia.
Christina Ferraz Musse
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