Por Christina Ferraz Musse

 

Na minha rua, estão derrubando uma casa. Ah! Como dói... É como se fosse uma violência, um estupro. A casa sem paredes, sem defesas, deixa exposto, à vista de todos, o seu interior. Um vaso sanitário, um tanque, uma pia. Intimidades tão bem guardadas e, de repente, tudo está aberto, rasgado, dilacerado. Nos últimos anos, funcionou ali uma fábrica de estojos, desses muito finos, usados para guardar medalhas, condecorações. O dono da fábrica era um senhor simpático, que sempre me cumprimentava ao cruzarmos na calçada. No momento, não sei o que aconteceu com ele e com a fábrica antiga, que ainda trabalhava de forma muito artesanal, o que combinava com o jeito verde da casa. A casa ficou sem alma.

As pessoas é que dão vida às casas. Decoram os ambientes, colocam vasos, penduram quadros. E conversam, discutem, riem, choram, amam. Casas cheias de gente são casas cheias de vida. São casas com alma. Casas sem pessoas parecem estranhas. Tão estranhas que às vezes nossa imaginação não resiste e cria personagens para elas. Casas mal assombradas são assim. Já que não têm gente de carne e osso, têm gente de imaginação.

Moro em apartamento, mas tenho paixão por casas. O apartamento é prático, seguro, tem tudo a ver com a razão. A casa é emoção, paixão. Cresci numa casa, que fica num lugar simpático: o Largo do França, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. No Largo, reina uma centenária amendoeira. O bonde faz ponto em frente. Da janela da sala, sempre tive uma das minhas vistas prediletas do Rio: avistava a baía de Guanabara e, nos dias de céu claro, depois da chuva, conseguia enxergar as serras de Petrópolis e Teresópolis. O cenário era tão perfeito, que eu me dava ao luxo de acertar o relógio pelos ponteiros da torre da estação da Central do Brasil.

A casa antiga, do início do século, tinha quintal com mangueira, jaqueira e bananeira, além de um grande bambuzal. Quando era pequena, eu, meus irmãos e primos eventuais brincávamos lá de espantar os morcegos com grandes varas de bambu, ou rolávamos pneus velhos, que se transformavam em carros na nossa imaginação. A parte do quintal que era cimentada servia de pista para os patins ou quadra para o futebol. Ali, vivemos uma infância de paz, que incluiu comemorações inesquecíveis. Em junho, nem tanto frio fazia, mas nossas festas tinham fogueira, balões (nem pensávamos em risco de incêndio) e fogos de artifício. Papai usava um boné de lã, não sei se da Bolívia ou do Peru, cobrindo a cabeça. Nós o imitávamos, como se estivéssemos no alto de uma serra, mas estávamos no Rio. Era uma aventura...

Na época de Natal, em pleno verão carioca, era também no quintal, que colocávamos o peru, que ali aguardava pacientemente a morte. Eu e meus irmãos não entendíamos bem como aquele estranho animal acabava virando ceia. Todo o ritual nos parecia um enigma. Depois de bem alimentado o mês inteiro, o peru era embebedado com cachaça para, assim, ficar mais fácil acabarem lhe cortando a goela. Para nós, a bebedeira do peru era um capítulo especial da vigília do Natal.

A casa que eu habitei continua lá, mas cadê sua alma? Santa Teresa mudou. Hoje, apesar de continuar com uma charme todo especial, bares, restaurantes e ateliês, o bairro foi invadido pelos traficantes. Dia desses, uma professora amiga, que mora em Santa Teresa, falou-me da casa: segundo ela, os moradores chamam o lugar, onde a casa está, de Bósnia, tantas são as balas que se cruzam por ali. Fiquei chocada. Ela confirmou: a casa fica no espaço entre os dois morros que disputam o controle do tráfico, por isso é alvo fácil das balas. Fiquei pensando no velho Largo do França, na algazarra das cigarras, quando era verão, nos cachos de banana que ficavam no quintal, até nas ratazanas que prendíamos nas ratoeiras... A casa resiste, mas sei que chora.

As nossas cidades destróem as casas, como destróem a convivência. É mais fácil construir prédios, condomínios fechados, onde as pessoas só se encontram com seus iguais e se sentem protegidas do mundo lá fora. Meu coração fica apertado, quando vejo que as casas estão sendo cercadas de muros ou destruídas. Parece que estamos em guerra. Realmente, estamos. Antes, o que parecia distante, coisas do cartel de Cáli, está muito próximo, pela diferença de renda, pela falta de planejamento dos governantes, pela omissão. As cidades estão crescendo sem que as pessoas discutam, participem, digam o querem. As cidades estão cercadas.

Vivendo, hoje, em Juiz de Fora, sei que ainda é possível interferir naquilo que parece irremediável. Sei que é possível deixar a cidade mais bela, mais feliz. Se as pessoas participarem. Se elas não ficarem simplesmente esperando que o poder público ou os empresários ou as lideranças façam tudo por elas. É preciso sair do comodismo. É preciso cobrar, exigir, lutar por aquilo em que acreditamos. É preciso defender a alma das casas, para que a gente não fique ameaçado de viver numa cidade de zumbis.

Christina Ferraz Musse