Por Christina Ferraz Musse

Há alguns anos, tenho tentado convencer meus alunos da inexistência de um mundo dividido entre o bem e o mal. Em sala de aula, mantenho um cuidado constante ao ensinar a eles que, ao criarem o perfil de seus personagens, no momento de escrever roteiros de ficção para a TV, devem se preocupar em descrever figuras complexas, que tenham algumas características consideradas boas e outras ruins. Insisto sempre que não existe mais o tipo do vilão que agrega tudo o que consideramos feio, mau, desonesto, injusto, e muito menos o mocinho, que seria aquele coroado por todos os valores que nossa cultura dignifica, como força, beleza, solidariedade, humildade etc. ( Não posso deixar de fazer um parênteses, ao me lembrar do saudoso programa do Raul Longras, "Casamento na TV", em que as candidatas ao altar descreviam sempre com estas características seu modelo de marido ideal. ) Pois bem, anos depois da Guerra Fria e de todas aquelas ameaças de um mundo bipolar - acabamos mesmo com um modelo único, global - fico tentada a ter que voltar a acreditar que vilões existem, apesar de mais sofisticados, mais preparados e sempre muito bem escondidos sob a pele de doces e meigos cordeirinhos.

Não sei dizer exatamente se a vida imita a arte ou a arte a vida, mas tenho tido provas de que os vilões do mundo real são extremamente bem preparados e são, de fato, maus. Até porque eles provocam um sofrimento atroz, mudo, naqueles personagens que, por suas características, ganhariam o papel de herói ( ou heroína ) em qualquer filme ou novela que se preze. O vilão, na minha opinião, é mestre na arte da sedução, dos conchavos, das intrigas, que lembram personagens extremamente hábeis em exercitar aquilo que, em Minas, às vezes chamamos de conversa ao pé do ouvido. Necessariamente a conversa ao pé do ouvido não precisa ser intriga, pode se limitar a uma fofoca mais ingênua, a um comentário, a um aviso. Mas da mesma forma que, nas empresas, a "rádio-peão" alimenta os boatos de corredor, a conversa discreta alimenta as grandes estratégias de ação, que não precisam ser assim tão importantes quanto aquelas que definem o vencedor de uma batalha na guerra, mas podem ser indispensáveis a galgar postos numa organização, roubar a idéia alheia, "detonar" um projeto que pode fazer alguma sombra aos meticulosos projetos de ascensão do vilão.

Os vilões modernos falam pouco. Aqueles de estilo melodramático, exagerados, malvados estão fora de moda há muito tempo. Estes a gente reconhece na hora e tem como se defender deles. O verdadeiro vilão não parece vilão. Ele costuma ser atencioso, às vezes sorridente ( não muito ) e é extremamente racional, embora, tenha suas recaídas e dê seus ataques ( também, ninguém é de ferro - ou gelo -, nem mesmo o vilão! ) Mas, no geral, ele nunca dá um motivo claro, visível, para que as pessoas não gostem dele. Pelo contrário, muita gente gosta. Mas quando o verdadeiro vilão resolve dar o seu bote, ele é fatal, faz um estrago sem fim.

O que mais me preocupa nessa história toda é que, enquanto eu vejo os vilões aprimorarem suas táticas de ação, cada vez mais certeiras, não consigo reconhecer nos heróis aquela clareza que deveria orientar seus passos para que eles não só se defendessem, mas tomassem a dianteira da história, com direito a "happy end". Os heróis ( pós ) modernos estão cansados, têm medo de assumir posições, de falar o que pensam. No ambiente de trabalho, um dos mais doentios que eu conheço, apesar dos esforços do pessoal de RH, os heróis ficam mudos. Em nome da bandeira da dignidade, do "não quero prejudicar ninguém", eles aguentam, calados, humilhações, espertezas ( e não é que meu pai dizia que "este mundo é dos espertos"? ) e todo o tipo de pressão. Sofrem em silêncio, têm gastrite, dor de cabeça, insônia, vão ficando tristes, às vezes depressivos, outras, ansiosos. Mas não tomam atitudes. Em nome da pseudo-lealdade, não fazem nada e, quando se dão conta, não há mais tempo mesmo. Fico aqui a pensar. Acho que os heróis, se é que eles existem, e eu acredito que sim, e em maior número, têm que acordar, tomar as rédeas e mudar o rumo da história, para que a gente ainda possa acreditar na vida e nos homens.

Christina Ferraz Musse